Em 24 de fevereiro de 2022, forças militares russas invadiram a Ucrânia, com ataques espalhados por diversas cidades do país. Esse episódio, que completa três anos neste fevereiro, desencadeou uma guerra que ainda persiste, deixando milhares de mortos e refugiados. Com a escalada dos bombardeios ao território ucraniano, aproximadamente um quarto da população do país (dez milhões de pessoas) teve que deixar suas casas, sendo deste total 6,3 milhões de refugiados (em outros países europeus) 1 e 3,6 milhões deslocados para cidades vizinhas dentro do próprio país (deslocados interno)2. A crise humanitária soma-se a efeitos significativos na economia global, que resultaram em impactos não só regionais, como em economias distantes – e parceiras – como o Brasil.
Apresentando um contexto histórico, geopolítico e cultural complexo, as recentes tensões entre Rússia e Ucrânia intensificaram-se a partir de 2013 com o chamado Euromaidan, onda de protestos pró Ocidente que ocorrerem na Ucrânia e foram violentamente reprimidos pela polícia local. Os protestos ocorreram em resposta à decisão do então presidente do país, Viktor Yanukovich, aliado à Rússia, de suspender a assinatura de acordo econômico que seria firmado com a União Europeia. O Euromaidan resultou na abertura de processo de impeachment do presidente Yanukovich, que fugiu do país e se exilou na Rússia. Neste período surgem também protestos contrários, pró Rússia, por grupos separatistas. No ano seguinte, a Rússia anexou ao seu território a península da Crimeia, localizada no sul da Ucrânia3.
Tendo em mente que não há formas de simplificar o histórico entre os dois países sem incorrer em generalizações, tem-se que Rússia e Ucrânia compartilharam, por séculos, vínculos relacionados aos seus territórios, populações, idiomas e traços culturais. Antes de se unirem na formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922 (da qual Rússia e Ucrânia eram duas das quatro repúblicas fundadoras4), os dois países também compartilharam seus territórios entre os séculos 9 e 11 no Principado da “Rússia de Kiev” (do qual Kiev, atual capital da Ucrânia, era o centro do poder político do principado russo). A partir do século 17, formou-se um Estado Cossaco ao sul da atual Ucrânia, população que estruturou as bases da identidade nacional ucraniana5. Após sua dissolução no século 18, o território do Estado Cossaco foi divido entre a Polônia e o Império Russo. Por sua vez, com o colapso do Império Russo após a Revolução Russa em 1917 e Primeira Guerra Mundial em 19186, deu-se início ao processo de unificação das quinze Repúblicas Soviéticas que se formariam naquele contexto7. Entre os anos 1932 e 1933, com a política soviética de coletivização de propriedades agrícolas, uma onda de miséria dizimou mais de 5 milhões de ucranianos e a Grande Fome (Holodomor) ficou conhecida como o “holocausto ucraniano”6 8.
Com o colapso da URSS em 1991, a Ucrânia se tornou independente em 1997 e buscou maior aproximação com o Ocidente, se afastando da influência Russa. Entretanto, a região sul da Ucrânia, que inclui a península da Crimeia, é marcada por uma significativa presença étnica e linguística russa e tornou-se foco de movimentos separatistas que culminaram na anexação desta península pela Rússia em 2014. Na mesma época, a região de Donbas, no leste ucraniano, também passou a ser controlada por grupos separatistas pró-Rússia. Importante destacar que, se por um lado a região do Donbas (e outras cidades ao leste da Ucrânia sob invasão das tropas russas) apresentem ativos econômicos relevantes para a Rússia, como áreas industriais e infraestrutura de gás natural que permite que o país exporte este insumo para regiões na Europa e Ásia, o interesse russo na região da Crimeia (e na própria Ucrânia enquanto nação) está relacionado, em maior escala, a questões de influência geopolítica e socioculturais.
A partir do final de 2021, quando a Rússia intensificou sua presença militar ao redor da Ucrânia, o presidente russo, Vladimir Putin, apresentou à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) uma série de exigências relacionadas à segurança, em resposta à expansão da aliança militar em direção às fronteiras russas. Entre outros pontos, texto explicita que a Otan não deve receber outros membros, especialmente a Ucrânia, e não deve conduzir atividades militares em território ucraniano9. A expansão da zona de influência da Otan é, para a Rússia, uma ameaça estratégica, considerando que a aliança foi originalmente criada durante a Guerra Fria para conter a influência soviética. Importante destacar que a Otan apresenta um artigo de defesa coletiva, onde seus países concordam que um ataque a qualquer país membro é considerado um ataque a toda a Aliança, de forma que todos os membros poderão responder belicamente10. Como consequência, a possível entrada da Ucrânia na Otan significaria, de imediato, que os países que compõem a Otan também estariam em guerra com a Rússia, o que escalaria o conflito a riscos nucleares.
Deste contexto pode-se compreender um pouco melhor as narrativas empregadas por ambos os lados. Enquanto que a Rússia emprega um discurso de que russos e ucranianos formam “um único povo”, acusa os países ocidentais de usarem a Ucrânia para expandir sua zona de influência sobre seu território e justifica as recentes invasões como ações legítimas de proteção aos povos destas regiões11; o governo da Ucrânia reafirma o controle sobre as regiões separatistas e reforça as ações dos seus grupos nacionalistas, que surgiram à época da Revolução Russa de 1917 e se intensificaram durante o regime soviético, sobretudo no período da Grande Fome. Em conjunto, estes fatores reforçam a complexidade do conflito que ocorre em uma região que se desenvolveu ao longo dos séculos pendulando entre zonas de influências ora pró Rússia, ora pró Ocidente.
Além das tensões geopolíticas e questões humanitárias, a guerra trouxe, também, relevantes consequências econômicas em escala global. O conflito acordos diplomáticos e os preços de commodities como petróleo e gás natural dispararam, elevando os custos de energia e combustíveis e pressionando a inflação mundial. A interrupção na produção e exportação de grãos, especialmente trigo e milho – produtos essenciais da Ucrânia e da Rússia –, comprometeu a segurança alimentar e aumentou os preços dos alimentos em diversos mercados.12
Em resposta à invasão, a União Europeia (UE) e outros aliados ocidentais impuseram uma série de sanções econômicas à Rússia. Desde março de 2024, as importações de combustíveis fósseis russos pela UE foram reduzidas em mais da metade em comparação aos níveis pré-guerra. Apesar de a UE ainda ser a maior compradora desses combustíveis, sua dependência diminuiu significativamente, aproximando-se dos níveis de importação da China.13
Nas relações com o Brasil, a balança comercial com a Rússia é deficitária, ou seja, o volume de importações supera o de exportações. Em 2024 foram importados da Rússia US$ 10,9 bilhões, volume que representara 4,1% de todas as importações brasileiras. Dentre os produtos importados, os combustíveis – sobretudo o petróleo refinado – se destacam, respondendo por cerca de 60,0% de todos os produtos russos que entram no Brasil. Os fertilizantes ocupam o segundo lugar, representando 33,8% das importações brasileiras da Rússia.
A partir do Gráfico (1), pode-se analisar a evolução das importações destes dois produtos ao longo dos últimos onze anos, comparando as oscilações das quantidades importadas (linha contínua) com os valores importados (linha pontilhada). Nota-se que, embora a quantidade de combustíveis tenha atingindo o menor volume durante o primeiro ano de pandemia (54,4 bilhões de quilos em 2020), houve a recuperação em 2021 e a manutenção das quantidades importadas durante o período em que ocorre a guerra (de 2022 a 2024). O mesmo não é observado para os valores das importações, que atingiram um pico de R$ 49,5 bilhões em 2022. Desta forma, sugere-se que, desde o início do conflito, o Brasil conseguiu manter o volume de combustíveis importados da Rússia, mas a um custo mais elevado.
Já com relação aos fertilizantes importados, nota-se que houve uma queda de 8,4% na quantidade importada em 2022 com relação ao ano anterior, com um aumento de 62,5% no valor dos fertilizantes no mesmo período. A partir de 2023, um ano após o início da guerra, os valores e quantidades de fertilizantes retornaram aos patamares do período pré-conflito.
No Brasil, as relações comerciais com Rússia e Ucrânia sempre foram baixas. Segundo dados de 2024 do Comexstat, a Rússia representou apenas 0,4% das exportações brasileiras e 4,1% das importações. Já a Ucrânia respondeu por 0,015% das exportações e 0,2% das importações.14 Apesar disso, os impactos da guerra foram sentidos, sobretudo, na volatilidade dos preços das commodities e na pressão inflacionária. A dependência de fertilizantes provenientes da Rússia e de Belarus afetou o setor agrícola brasileiro, elevando os custos de produção e os preços dos alimentos.15
No contexto do Espírito Santo, segundo o Comexstat, a Rússia foi destino de 0,65% das exportações do estado em 2024, enquanto a Ucrânia respondeu por apenas 0,012%. No campo das importações, a Rússia representou 1,072% das compras estaduais, e a Ucrânia, 0,0002%.16
Especialistas apontam que o Espírito Santo é particularmente afetado no componente de internacionalização, devido à forte dependência de sua economia das cadeias globais de comércio. O estado perdeu competitividade em exportações e importações que transitavam pelo território capixaba com destino a outros mercados.17
Em um cenário de incertezas, a continuidade do conflito mantém pressionadas questões como segurança alimentar, inflação global e reorganização de alianças econômicas e políticas. O início do ano de 2025 foi marcado por novas sanções dos Estados Unidos contra o setor energético russo, com o objetivo de reduzir as receitas da Rússia para financiar a guerra com a Ucrânia.18 Paralelamente, a eleição de Donald Trump trouxe novas camadas de imprevisibilidade ao panorama econômico global. Suas políticas protecionistas prometem impactos significativos em economias dependentes do comércio exterior, como as da Europa, além de afetar relações comerciais estratégicas com países como a China. Embora Trump tenha prometido em campanha encerrar a guerra nos primeiros dias de seu governo, ele agora reconhece que o processo é mais longo e complexo do que previsto.
De acordo com uma pesquisa do Fórum Econômico Mundial (FMI), os conflitos armados seguem como o principal risco global em 2025. Além da guerra entre Rússia e Ucrânia, conflitos letais em regiões como Sudão do Sul e Faixa de Gaza aumentam as tensões geopolíticas.19 Soma-se a isso o ambiente de incerteza econômica persistente desde a pandemia, agravado por eventos como a invasão russa à Ucrânia. Esses fatores combinados impactam negativamente o consumo, os investimentos e aumentam os riscos de pressões inflacionárias em escala global. A continuidade da guerra, portanto, tende a cada vez mais desacelerar o crescimento da economia global, aprofundando incertezas nos mercados internacionais e dificultando a recuperação econômica pós-pandemia. Nesse cenário, investir em diversificação de mercados, inovação e acordos comerciais estratégicos será crucial para mitigar os riscos e garantir uma inserção mais resiliente na economia global a médio e longo prazo.
1 Ukraine Refugee Situation, disponível em https://data.unhcr.org/en/situations/ukraine
2 UNOCHA (2025) – Ukraine humanitarian needs and response plan.
3 Makio; Fuccille (2023) – The 2014 Russian invasion of Crimea: Identity and geopolitics.
4 A URSS foi fundada em 1922 pelas Repúblicas Socialistas Soviéticas da Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucasiana (esta última formada pela união entre Azerbaijão, Armênia e Geórgia). Robert; Kelley (1924) – The territorial organization of the soviet power.
5 Mick (2023) – The Fight for the past: Contested heritage and the russian invasion of Ukraine.
6 Holodomor, o holocausto ucraniano. Editora Caras, 2022.
7 As quinze repúblicas soviéticas eram: Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Estônia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Letônia, Lituânia, Moldávia, Rússia, Tajiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão.
8 Contijo (2020) – Nação, simbolismo e revolução Ucrânia: experiência etnográfica tensa na/da liminaridade
9 Ministérios das Relações Exteriores da Federação Russa.
10 Organização do Tratado do Atlântico Norte.
11 Putin (2021) – On the historical unity of russians and ukrainians.
12 Ver mais em: https://www.imf.org/pt/Blogs/Articles/2022/03/15/blog-how-war-in-ukraine-is-reverberating-across-worlds-regions-031522
13 Ver mais em: https://www.russiafossiltracker.com/
14 Dados de importação e exportação do Brasil. Ver mais em: https://comexstat.mdic.gov.br/pt/home
15 Ver mais em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60487877
16 Dados de importação e exportação do Espírito Santo. Ver mais em: https://comexstat.mdic.gov.br/pt/home
17 Ver mais em: https://www.folhavitoria.com.br/economia/noticia/04/2023/guerra-na-ucrania-como-o-conflito-afeta-a-economia-do-es
18 Ver mais em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/novas-sancoes-dos-eua-contra-russia-desestabilizarao-mercados-globais-diz-kremlin/#goog_rewarded
19 Ver mais em: https://reports.weforum.org/docs/WEF_Global_Risks_Report_Press_Release_2025_PT.pdf