Parte I –  a revolução tecnológica nos transportes e os desafios para os próximos anos

Nota do autor: O presente artigo tem o objetivo de discutir a transição tecnológica dos sistemas de transporte público urbano a partir da introdução dos sistemas de Mobility as a Service e apontar as oportunidades para a construção destes sistemas nas cidades brasileiras. Para tal, o presente artigo foi dividido em duas partes. Neste primeiro texto é abordado a mudança emergente no horizonte tecnológico dos sistemas de transporte público no Brasil e no mundo, os problemas e oportunidades apresentadas pelo surgimento dos novos serviços de transporte a partir da dimensão de melhor servir o consumidor final. A segunda parte trata dos possíveis caminhos a serem trilhados no futuro e as oportunidades para os operadores de transportes já estabelecidos no mercado e potenciais entrantes.

MaaS (mobility as a service) é termo da moda na indústria dos transportes. Derivada do termo SaaS ou software as a service, esta denominação se aplica a emergência de novas tecnologias, empresa e sistemas de transporte que veem a mobilidade não apenas como uma atividade fim, mas um ecossistema de serviços desenhados para conectar pessoas e atividades no espaço urbano.

Embora o termo MaaS e as componentes necessárias para o bom funcionamento destes sistemas estejam em uma fase conceptual ainda muito abstrata e ampla, os novos serviços que vão compor este sistema já começam a ser experimentados nas principais cidades do Brasil e do mundo.

Olhando para o dia-a-dia do setor de transporte urbano nas principais cidades do mundo é fácil de se notar que os sistemas de ônibus, metrô e trens de subúrbio, que respondiam por quase 100% das viagens feitas no transporte público até a 10 anos atrás, começam a se misturar com sistemas de bicicletas, patinetes e motos partilhadas que surgem diariamente na paisagem urbana. Isto para não falar nos sistemas de transporte sob demanda como a 99taxi, Uber e cabify que mudaram o jogo dos sistemas de mobilidade individual sob demanda.

Não há como evitar! O horizonte que se apresenta mostra que a capacidade de escalar presentes nestas novas tecnologias aponta para o nascimento de cidades com mais alternativas de transporte da noite para o dia.

Então, o leitor deve estar a se perguntar o que está faltando?

A resposta começa por ser simples, mas depois acaba por cair em um quarto escuro onde o mundo todo está a dar os primeiros passos. A resposta simples resume-se em uma palavra, integração (seja física, tarifária, de planejamento e em alguns casos de operação). Pode parecer mais do mesmo porque já sentimos as dores deste problema algumas vezes no nosso dia-a-dia quando temos que pegar dois ônibus e pagar duas passagens por exemplo. Qualquer pessoa que ande regularmente de transporte público sente como a falta de integração prejudica a experiência do usuário que inevitavelmente vai buscar alternativa no automóvel particular.

No entanto, o ponto central aqui começa por entender que, em um sistema em MaaS, a existência de múltiplos serviços em paralelo torna gradualmente mais complexa a construção de interfaces de integração de uma forma eficiente para os operadores e com benefícios para os consumidores (seja para quem chega como para quem já está no mercado). Imagine o quanto é financeiro, físico e politicamente complexo integrar o serviço de dois sistemas (ex. ônibus e metrô). Agora, pense que cada novo operador que quiser entrar nesse acordo vai precisar negociar não só com um mas com todos os serviços já existentes. Apenas para dar uma dimensão matemática do problema, se pensarmos em situação hipotética de 10 operadores, seriam precisos 45 acordos bilaterais para atender possíveis integrações entre sistemas diversos.

Mas adianto ao leitor que não chegue a se preocupar muito com as N dimensões que este problema na integração de diferentes serviços de transporte pode apresentar. Isto porque, no caso do sistemas MaaS, todos estes problemas são derivados da falta de um arcabouço institucional capaz de suportar uma entrada racional de novos operadores.

Em teoria, todo este problema nasce a partir da compreensão de que o espaço na indústria de transportes é um bem comum e que a entrada desregulada de novos serviços só aumenta a qualidade da oferta de serviços de transporte até um determinado ponto. Depois desse ponto, a entrada de novos serviços e/ou operadores apenas cria congestionamento.

A figura acima é um exemplo de como a falta de racionalização aliada a velocidade na entrada de novos serviços pode criar sérios problemas para as pessoas, operadores e cidades. Esta foto mostra como em Beijing na China, o excesso de sistemas de bicicletas partilhadas cria verdadeiros cemitérios de bicicletas abandonadas nas esquinas. Ao olhar para exemplos como este, fica claro que isto é só o começo de algo que embora não sabemos muito bem sobre quais serão os efeitos colaterais, já podemos ter a certeza que virão em grande escala.

O problema aqui é que até então está sobre oferta de transporte tem sido regulada através de processos públicos de concessão planejada de partes do mercado de transporte, mas no caso das novas tecnologias este sistema se mostra muito rígido e ineficiente, uma vez que restrito aos ciclos de planejamento público e que pode ser facilmente violado através de alternativas tecnológicas tal como aconteceu com as licenças de táxi quando apareceu a UBER.

Mas então, o MaaS é ou não a renovação tecnológica dos transportes?

Sim, mas temos que começar a pensar como organizar isso de forma a mitigar os conflitos e maximizar a oferta de valor para o usuário final. Algumas cidades como Londres e Estocolmo já começaram a desenhar sistemas capazes de juntar múltiplos operadores sobre um mesmo guarda-chuva institucional de forma dinâmica através de portais de dados e algoritmos de planejamento regulatório.

No entanto, estes ainda são modelos experimentais muito mais baseados em teoria do que na real experiência. Em outras palavras, não há aqui receitas. Isto é a fronteira da pesquisa e desenvolvimento em regulamentação e operação de transportes. A única solução e explorar o novo através de tentativas, programas pilotos e laboratórios de simulação.

Se até os dias de hoje a regulamentação dos transportes tem orbitado ora os sistemas de contratos públicos ora os mercados desregulamentados nada do que já foi feito parece servir para sustentar um sistema que diariamente vai ganhando novos graus de complexidade. Criar contratos para tudo e todos já não servem nesse contexto porque a tecnologia passa por cima de contratos como a Uber fez com os táxis. Do outro lado, a livre entrada também já começa a mostrar os seus limites.

A solução precisa ser algo mais inteligente do que tudo aquilo que já inventamos em termos de contratos ou acordos de interação governo-empresa e empresa-empresa. E aqui está a verdadeira transformação digital do setor de transporte. Aqui está o grande potencial de valor seja para os operadores, consumidores e reguladores. Isto porque o framework para construir um ecossistema MaaS não pode ser estático e, ao contrário do que os modelos regulatórios vigentes, deve suportar de forma ordenada a expansão do sistema. Não existe uma solução única para este problema e aqueles que conseguirem responder a estas questões abrirão as portas para um novo paradigma nos transportes.

Na próxima edição, vamos abordar os caminhos para construir esses sistemas e como podemos aplicar estes elementos a realidade brasileira.

Continua…

 

Matheus Oliveira é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor pelo programa MIT-Portugal em sistemas de transporte.

 

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